quarta-feira, novembro 29, 2006

CORRIDA MÍSTICA - QUEM SOU EU?

Saindo da sessão de yoga, meto-me no boguinhas de regresso a casa. Paz e serenidade, o carro leva-me suavemente, vou entrando em Monsanto, meu local de treinos. Ocorre-me então que vinha mesmo a calhar uns 11 km de corrida… Já estava ali, fato de treino e ténis adequados, porque não aproveitar? Ontem não tinha treinado as 3 horas por causa da constipação, mas hoje estou melhor, porque não?
Um pequeno desvio e entro no parque de estacionamento do Centro Ambiental. Curiosamente, o parque de estacionamento está deserto e tudo está silencioso. Reparo que, embora sendo só 21 horas, não me cruzei com nenhum automóvel no percurso de Monsanto, desde a Cidade Universitária até ali. Sinto um qualquer mistério calmo no ar, uma atmosfera especial que não sei descrever.

Fecho o carro, ligo o cronómetro e arranco. O meu corpo, preparado pela sessão de Yoga, está prontíssimo para a corrida e lá vou eu. Na estrada deserta, a mata é banhada pela luz amarela dos candeeiros. Primeiro, o troço é a descer e vou acelerando. Da mata, vem-me o pio duma coruja. Curioso, sempre corro ali à noite, sempre ouvi as corujas, mas hoje aquele pio era diferente, mais nítido e envolvente. Aproxima-se a subida… Esta subida, de curvas e contracurvas, é o calvário dos corredores. A princípio, via-me aflito mas agora, subo-a toda a correr e nos fins de semana, divirto-me a ultrapassar os ciclistas de Domingo que acabam por se apear, estoirados, sem fôlego para mais. Mas agora a estrada está deserta, aquela luz amarela, neste estranho dia de hoje, ilumina dum modo diferente, transformando a paisagem num cenário de desenho animado, de Branca de Neve, de Capuchinho vermelho, de Gata Borralheira… Passada a curva, um sobressalto: Lá adiante, a uns 200 metros, um lobo.

Um lobo em Monsanto??? Bom, não sei, estes ecologistas radicais bem capazes disso são, coelhos não faltam, já introduziram os esquilos, se calhar introduziram lobos também, para fechar a cadeia ecológica… Resolvo adoptar a minha estratégia para os cães, essa ameaça dos corredores: Não mostrar medo, prosseguir o caminho com decisão. Assim vou avançando e aproximando-me do bicho. Deveria meter-me por um desvio na mata, discretamente evitá-lo, mas curiosidade e um sentido de poder faz-me prosseguir. O lobo está agora a uns 100 metros mas, quando avanço mais, ele entra num galope curto e volta a afastar-se, mantendo a distância. Olho à volta, procuro um pau, uma pedra, quem sabe se ele me ataca?

Existem uns calhaus na berma escavada, ramos caídos mais dentro da mata, bom, se houver azar, terei que usar alguma arma. Sinto-me um homem das cavernas, quase outro animal. Aproximo-me da berma e meço com olhar os pedregulhos, são demasiado grandes. Um tronco é mais manuseável, olho os ramos caídos, para apanhar um sem parar de correr. Mas reparo que o lobo prossegue com o rabo entre as pernas, mirando-me de esguelha. Está com medo de mim!
De facto, cresce em mim a sensação de poder, de força, como sempre quando o meu organismo já está quente e a corrida entra em velocidade de cruzeiro. Resolvo acelerar, o lobo entra novamente a galope e ganha distância. Desaparece na curva e eu sigo-lhe no encalço. Volto a vê-lo, está de novo a uns 150 metros mas parou, atravessado na estrada, agora o rabo arqueado para cima, e…ladra!

Não é um lobo, é um cão, mas já não tem medo de mim, ladra e não sai do meu caminho! Sem mostrar medo, aproximo-me e reconheço o local e o cão: Aqueles são os cães que guardam uma das casas da guarda-florestal, geralmente dentro da vedação. Só que este, o maior, hoje está cá fora e pronto a proteger o seu território!
Tento fazer uma diagonal que evite o cão, sem me desviar ostensivamente. O cão continua a ladrar, mas eu resolvo prosseguir, embora sinta a tensão e a adrenalina a aumentarem dentro de mim. O cão persegue-me, no mesmo ritmo da minha passada, o focinho dele escolta-me a centímetros das minhas pernas…Ai, pressinto a mordidela e transporto-me para umas dezenas de anos atrás, uns milhares de quilómetros para Sul. Norte de Angola, 1969, perto do quartel de Zala: O tiroteio irrompe no vale, só me resta correr colina acima, para os abrigos, as balas a baterem no chão ao meu lado, e eu antevendo a dor quente dum tiro certeiro nas costas. Que não veio. Nem mordidela. O cão, cumprida a sua missão de proteger a casa do dono, deixa-me em paz.

A inclinação da estrada muda, atingi o ponto mais alto, agora é a descida suave. Acelero de novo, rumo ao parque de merendas. Finalmente, gente? Não, há lenha e carvão ainda incandescente num grelhador, mas os comensais já se retiraram. Mesmo no Inverno, imigrantes usam estes grelhadores para preparar as suas refeições. Até com tempo a ameaçar chuva, como hoje. Passo sobre a autoestrada, em baixo vão carros, mas, entre as rotundas, cá em cima, nada. Estranho!
Aproximo-me do Anfiteatro Keil do Amaral, uma bela esplanada virada para o Tejo, toda a outra banda, a Ponte e, ao longe, Palmela, Sesimbra, o céu iluminado de Setúbal. Que maravilha! Passo ao lado do restaurante de Montes Claros e inicio o retorno, vou agora sob o viaduto da auto-estrada, corro entre a mata de altos pinheiros. Corujas de novo! Será a mesma? Não, são outras avisando da minha presença. Depois da curva, nova paisagem deslumbrante, agora, os bairros periféricos do Norte de Lisboa, o seu luzeiro entre a neblina. Lá, chove, troveja, vejo relâmpagos e os trovões distantes, que soam também estranhos, mas familiares e amigos.

Acelero na descida, a passada enérgica e cadenciada, o bater violento do coração, a respiração forte e ritmada leva-me, o corpo todo entregue às mil e uma impressões e de dentro de mim, vem um canto:

Foooo – fá! Foooo – fá!
Foooo – fá! Foooo – fá!
Eu sou o ar e a respiração
Eu sou o lobo, eu sou o cão
Eu sou a estrada e sou o chão
Sou o relâmpago e o trovão

Foooo – fá! Foooo – fá!
Foooo – fá! Foooo – fá!
Inspiração, expiração
Eu sou a luz, a escuridão
Eu sou a pedra, a escavação
Eu sou amor e a solidão!



Álvaro Costa

sexta-feira, novembro 03, 2006

A RELAÇÃO MENTE-CORPO E A ADAPTAÇÃO AO TREINO

TEXTO DA AUTORIA DE STEPHAN SEILER


EXTRAÍDO DO SITE home.hia.no/~stephens/brnbody.htm



Porque a maior parte dos fisiologistas do esforço centram a sua atenção nos músculos e na fisiologia sistémica, temos tendência para tratar o cérebro como uma misteriosa caixa negra, mas essa atitude está a mudar. Por mim, começo a reconhecer que preciso de aprender mais sobre o impacto do exercício sobre o cérebro, e o impacto da actividade cerebral na actividade física.
Neste texto, tentarei expor algum do material proveniente de 25 anos de trabalho do Dr.Heinz Liesen. Ele foi médico da selecção nacional alemã de futebol a qual, apesar das suas modestas capacidades, alcançou a final da taça do Mundial em 86 e 90. Foi também médico da equipa de Hóquei de Campo e da equipa do Combinado Nórdico (combinação de corta-mato e saltos, em esqui). Hoje, centra-se de novo na medicina preventiva. O conhecimento que adquiriu, resultante do acompanhamento de determinados atletas (e de pessoas activas não atletas) durante vários anos, com extensa monitorização da reacção imunológica, dos esquemas de treino, do desempenho físico e até da localização da actividade das ondas cerebrais, é único nessa área. Algum do material exposto baseia-se também no crescente corpo de conhecimentos produzido nos Estados Unidos e na Alemanha.


O Cérebro É o Centro do Desempenho Desportivo


Depois de tanto se falar de coração e músculos, pode parecer uma asneira dizer isto, mas é uma realidade: O cérebro, ao mesmo tempo que desencadeia todos os nossos movimentos voluntários, reage à tensão criada pelo próprio exercício. E, até certo ponto, a tensão aparece como uma qualidade omnipresente. O cérebro reage à tensão provocada pelo trabalho, condução, treino, competição. O impacto sensível desta tensão, pode-se revelar de várias maneiras:

Níveis de Catecolamina em Repouso - O treino adequado tende a causar a predominância parasimpática (repouso e recuperação) no atleta bem preparado. Contudo, se os esforços do treino forem demasiados, os níveis da hormona simpática (a da luta ou projecção) mantêm-se altos mesmo quando em repouso, o que é sinal de recuperação incompleta. Uma manifestação exterior desta alteração é um ritmo cardíaco elevado em repouso, embora existam outros sinais mensuráveis mais sensíveis que este. Outra característica do ritmo cardíaco em repouso é um certo grau de irregularidade: Existe uma variação considerável nas batidas, podendo medir-se pequenas variações do intervalo entre batidas sucessivas. É um facto que esta variação diminui, perante a expectativa duma tarefa, pois o estímulo simpático aumenta.

Razão Testosterona/Cortisol – A Testosterona é uma hormona anabólica, que desempenha um papel na regeneração e reparação do músculo e dos tecidos. O Cortisol é uma hormona catabólica que estimula a desagregação dos tecidos. Por exemplo, o nível de cortisol é elevado em situações de fome extrema, quando o tecido muscular é catabolisado para se converter em energia. Os níveis de testosterona tendem a ser maiores em indivíduos com elevada capacidade de treino duro e rápida recuperação (e naqueles que a recebem através de injecção). Os níveis de testosterona são naturalmente mais baixos nas mulheres do que nos homens (Cerca de 10 vezes menos). Em muitos estudos, a razão testosterona/cortisol mostrou ser um indicador dum estado de estagnação e sobrecarga de treino em atletas de alta competição.

A Função do Sistema Imunológico – Sistema Imunológico é uma designação simples dum sistema celular adaptável interno, que responde à invasão de substâncias estranhas e as elimina, ou minimiza a sua capacidade de replicar. A resposta do sistema Imunológico a uma invasão estranha pode-se modificar, na sua rapidez e na sua magnitude. O exercício cria mudanças drásticas e permanentes na função do sistema Imunológico. O exercício violento mostrou causar uma depressão transitória de certos componentes do sistema Imunológico, criando uma janela de susceptibilidade à infecção de várias horas após um esforço extremo. A tensão dum exercício intenso tem um efeito bifásico na função imunológica. Isso demonstra-se de vários modos:
Primeiro, a incidência das infecções do tracto respiratório superior (ITRS) diminui com o exercício moderado, mas aumenta nos atletas em treino duro (curva em J). Em segundo lugar, a amplitude da resposta imunológica a um determinado antigénio diminui em atletas sobrecarregados. Existem equipamentos de diagnóstico que permitem a aplicação controlada de 7 alergénios na pele do antebraço. A área total das consequentes reacções da pele dão a medida quantitativa do vigor do sistema Imunológico dum determinado indivíduo. Estas medições são de rotina em muitas equipas nacionais na Alemanha e Escandinávia.
Talvez a informação mais interessante que lhes posso fornecer seja também a que me é mais difícil de compreender, com os meus diminutos conhecimentos da química do cérebro: Parece que a mente interage com o sistema Imunológico e modula a resposta imunológica. Isto foi rotundamente demonstrado pelo Dr. Liesen. Comparando o sangue extraído imediatamente antes, e 1 hora depois de um diagnóstico inesperado, mas causador de tensão, observou mudanças bem evidentes na capacidade de resposta dos leucócitos sanguíneos. Esta modelação mental da função imunológica aparenta envolver a libertação, pelo cérebro, de compostos químicos específicos imuno-modeladores, em resposta ao estímulo emocional.

Perfis Psicológicos – Foram desenvolvidos vários instrumentos de pesquisa que parecem ser sensíveis às mudanças emocionais que acompanham ou precedem as modificações psicológicas e de desempenho associadas a um estado de sobrecarga. Esses instrumentos vão detectar a corrente disposição, a ansiedade, a qualidade do sono, o desejo de treinar, etc.

O Que É O Exercício Físico

Abaixo está o modelo apresentado pelo Dr. Liesen, baseado na sua experiência e investigação, ilustrando o potencial dos efeitos positivos e negativos do exercício físico na saúde e no desempenho de topo.

No mundo actual do desporto de alta competição, a verdadeira limitação à melhoria contínua deslocou-se, da quantidade do treino, para a capacidade de recuperação da mente e corpo. Muitos atletas da elite treinam 50 semanas por ano, por vezes 3 – 4 horas por dia. Quando esta violenta pressão física se combina à tensão das cada vez mais frequentes competições para satisfazer patrocinadores e comunicação social, e com a tendência para retirar tempo ou interesse ás distracções mentalmente criativas, os resultados são desastrosos. O que de facto vemos, se observarmos atentamente, é a súbita aparição de figuras extremamente talentosas, seguida, dois ou três anos mais tarde, do declínio das suas capacidades, ou mesmo da sua retirada de cena. Por detrás desses esgotamentos precoces está geralmente um treinador ou uma secção desportiva demasiado exigente.
O sucesso das equipas e dos atletas individuais dirigidos pelo Dr. Liesen não foi devido a uma intensificação do seu treino. Pelo contrário, a aplicação cuidada de mais treino “ de recuperação” de baixa intensidade e até mesmo dias de descanso total foi a chave.
Um jornal citou recentemente o atleta Bjorn Dahlie: ”Um dia sem treino é um dia sem valor”. Três semanas depois, ele teve de se retirar do campeonato nacional, por doença. O descanso é importante.
Importa também o modo como descansamos: Por exemplo, O Dr. Liesen observou que os atletas de futebol tinham tendência para, entre as sessões de treino, se limitarem a refastelar-se e a ver televisão, ficando as suas mentes quase num estado de vegetal. Para lhes aumentar a criatividade mental, levou os membros das suas equipas a visitar museus, a estudar línguas, a fazer peças de artesanato, isto, no auge dos treinos e da Taça Mundial. Os resultados foram excepcionais: Modestas equipas alemãs chegaram à final do Mundial em 1986 e 1990 (esgotando só aí as suas capacidades, em ambos os casos). O seu sucesso deveu-se, em larga medida, ao facto de se terem mantido saudáveis e fortes ao longo de todo o campeonato.
Quando observamos o modelo acima, vemos que o nível de exercício e a actividade mental criativa são, ambos, potenciais factores de bom desempenho e boa forma física. Quando construímos um programa de treino, temos que considerar a mente assim como o corpo.
O atleta típico não treina o mesmo volume que os atletas de elite. Então, poderemos pensar, “O excesso de treino não me afecta, porque só treino 12 horas por semana”. Mas, temos uma profissão, filhos pequenos, uma hora de ponta no trânsito, todos os dias; devemos então perguntar-nos: Todas as nossas sessões de treino são intensas? Será que cada corrida que fazemos se tornou numa prova de competição? Outras das nossas actividades de tempos livres desapareceram? Quando não estamos a treinar, estamos a pensar no treino...? Se respondeste sim à maior parte destas perguntas, há que reavaliar o nosso programa de treinos e o modo como encaramos o exercício.

A estratégia a longo prazo

Na Escola e ao nível académico, no mundo inteiro, o tempo está sempre a contar. Os atletas sentem a pressão para atingir o seu máximo “já nesta temporada”. Em muitos casos, isso conduz a ciclos anuais que não têm em conta o sequente desenvolvimento do atleta "depois". Mas, um atleta maduro, deve sempre lembrar-se de que está nesta jogada para o longo prazo: o treino é um processo prolongado de aprendizagem e de aperfeiçoamento físico e técnico. As medalhas vão para os que conseguem combinar talento e paciência, intensidade com inteligência. Em última análise, independentemente do nível de desempenho de cada um, o prazer do atletismo é mais doce quando serve para apurar na nossa vida, não apenas o nosso VO2 máximo...!

TEXTO DA AUTORIA DE STEPHAN SEILER
EXTRAÍDO DO SITE home.hia.no/~stephens/brnbody.htm

Trad. do inglês, de Álvaro Costa
aleddd@gmail.com
Com colaboração da Drª Clementina Figueiredo